quinta-feira, 29 de abril de 2010

Era uma vez...



Era uma vez uma menina de 16 anos que foi a uma festa de anos, no decorrer da tarde a sua melhor amiga discutiu com ela, numa tentativa de dar volta à situação a menina disse; “Imagina que vamos as duas na estrada, que vem um carro que me atropela e eu morro. Não te irias arrepender por estar mal comigo por causa disto?”.

Quatro anos depois a melhor amiga foi para a faculdade para o curso de educadora de infância, o professor disse para cada um ilustrar com plasticina um momento marcante da sua vida;


E a Marise enviou-me esta fotografia.

Duas semanas depois daquela conversa houve outra festa de anos, da Ana Lúcia, como era das poucas que tinha telemóvel o grupo de amigos juntou-se para lhe dar cinco contos {que saudades} para ela carregar o telemóvel, mas como malandrice ofereceram-lhe uma caixa cheia de moedas de cinco e dez escudos.

Comeram, falaram, riram, cantaram os parabéns, até que chegou a hora de ir para casa. A mãe da Ana disse que nos levava, mas eu queria ir a pé, o pai da Andreia estava a chegar para a ir buscar, mas eu queria ir a pé, enquanto a mãe da Ana foi buscar a chave do carro fugimos à socapa, andamos uns metros apanhando a chuva “molha parvos”, até que a Marise sente algo bater na sua perna e ouve um barulho, e numa fracção de segundos eu desapareci.

Por momento não sabia onde estava, de quem era, lembro-me da Filipa me perguntar o que tínhamos oferecido à Ana, depois dum pouco eu disse “muitas moedas”. Tive dores que me levaram ao delírio, perdi o andar, tive que fazer terapia da fala, por milímetros não fiquei tetraplégica {esta parte é boa pois não fiquei!!!}, e mais algumas coisas que um camião a 80 km hora pode provocar quando bate na nossa cabeça.

Naquela noite os médicos disseram à minha mãe para começar a acreditar em milagres…

Já perdi a conta do número de vezes que contei a “história do camião”, e de quantas gargalhadas ela proporcionou. Mas posso contar com uma mão as vezes em que contei o lado sério, e para ser sincera, prefiro a “versão” cómica; da Marise perguntar “Onde tas Nilce? Não te escondas.” {tendo em conta que estávamos numa recta descampada}, da minha mãe ir-me buscar à festa de anos e ser ela a encontrar-me na regueira {ao escrever não consigo transmitir aquele sotaque giro que faço sempre}, dela ir chamar a ambulância {em vez de usar o telemóvel pois era fácil demais}, encontrar um camião parado, onde o camionista lhe diz; “Estou a ver os estragos do camião porque bati num contentor do lixo” e a minha mãe dizer “ Não foi num contentor do lixo mas sim na minha filha.” {em vez de lhe dar um par de estalos por; ter atropelado a filha e ainda a confundir com um contentor do lixo}, não nos podemos esquecer da parte em que estou no S.O. em Lisboa, sem me puder mexer, e me vem a vontade súbita de fazer xixi, a minha mãe vai buscar a arrastadeira e depois de eu fazer o meu primeiro xixi pós acidente ela bate com a arrastadeira na minha perna e entorna “tudo” para cima de mim {tive direito a uma maca nova e a umas belas fraldas}.

Á pala do camião passei o nono ano porque não tive que fazer provas globais pois deram-me as notas do segundo período, e ainda ganhei uma boa indemnização {quando recebi o cheque coloquei uma fotocopia A4 no placar do meu quarto, mas a minha mãe fez-me tirar…}, além disso sempre posso justificar algumas atitudes ao dizer “Ai e tal fui atropelada por um camião”.


Lembro-me…

De não saber atar os sapatos, ensinaram-me várias formas mas todas elas eram provisórias pois dava dois passos e o nó desatava-se, de passar o dia a brincar e esperar pela hora dos desenhos animados, de estar ao colo da minha mãe com a cabeça encostada ao seu peito e acreditar que ouvia primeiro o que ela dizia do que as outras pessoas, de sonhar que estava na casa de banho e fazer xixi na cama, de fazer sapatos de musgo e limos, de sentir medo quando ficava sozinha em casa, de não ter idade para ir à frente no carro, de pedir à minha mãe para ler as legendas dos filmes pois passavam rápido demais, de não querer comer ao ponto de adormecer com a cabeça dentro do prato da sopa, de ouvir vinil, de ter dois canais na tv {e não existir o belo do comando}, de não ter telefone em casa, do nervosismo dos primeiros dias de aulas, do leite com chocolate que bebia na escola primária que me fazia ficar mal disposta, daquela tarde em que usei pela primeira vez uma caneta florescente, de quando me enganava de propósito para usar o corrector, dos bilhetinhos trocados no secundário e do nervosismo enquanto esperava pela resposta, de ter autorização para ficar fora de casa até ás oito da noite, de não ir à festa da terriola porque não tinha roupa nova, do computador velho que deram a mim e ao meu irmão que precisava da disquete de arranque, de receber a semanada, do primeiro dia em que fiz a depilação {preferia não me lembrar…}, da curiosidade e tensão do primeiro cigarro, de me sentir tão pequenina e frágil {independentemente da idade}, de me faltar as palavras para expressar aquilo que sinto {tantas e tantas vezes}…

Da necessidade de estar um pouco só, de quando comprei o meu carro, de não precisar ler para entender, de comer tanto que me parava a digestão, de levar o Mp3 no bolso e ouvir música por aí, de perder a conta ao número dos canais de tv {e do comando ter tantos botões que eu não sei para que servem}, de ficar novamente mal disposta mas por beber álcool demais, das noitadas em que chego a casa ás oito da manhã, de comprar o meu portátil, da banalidade de comprar um maço de cigarros, de usar a mesma roupa e os mesmos ténis durante anos sem ligar a isso, de ver a serenata de Coimbra na tv, de vestir o traje pela primeira vez, da sensação de pegar a minha irmã e a minha sobrinha ao colo.


Pelo B.I. tenho 26 anos, mas se pensar nos lugares por onde já passei, nas dez casas onde já vivi, nas pessoas que já conheci, nas dúvidas e descobertas, vitórias e algumas derrotas, nos sonhos, nas paixões, nos laços criados e nos perdidos, no “Tudo começou no A”… as memórias são tantas que os 26 anos que vêem no BI parecem poucos. Ás vezes a diversidade de fotografias mentais dá-me a sensação que já vivi mais do que uma vida.


Por outro lado, quando fui estagiar para um infantário com crianças de três anos, cada vez que se fazia digitinta ou massa de cores eu dizia sempre um número a mais do que as crianças que tínhamos de forma a participar também, vi uma chaleira eléctrica e uma cafeteira onde o café sai como se fosse uma fonte e dei pulos de alegria, quando entrei pela primeira vez no carro da minha prima Ju que “falava” foi como se tivesse dentro do Kitt do “Justiceiro”. De olhar para uma bola de sabão como se tivesse a ver um pedaço de magia. A vontade {por vezes incontrolável} de saltar e brincar sem pensar em mais nada, sentir simplesmente.

Por vezes pela forma como olho para as coisas, como sinto, ou por não encontrar resposta num mundo que por vezes parece que está de pernas para o ar… sinto-me uma criança.


Quantas vezes me faltaram palavras para expressar aquilo que sentia, quantas vezes disse coisas que me arrependi depois…

Já ouvi tantos sotaques, vi tantos sorrisos e olhares, sentimentos, coros e acordos que poderiam fazer parte num filme digno de um Óscar, imagens flash com as cores mais vivas e belas.


Já me senti sem saída possível, outras vezes com tantas saídas que bastava escolher e seguir sempre com “pensamentos positivos”.


Hoje faz dez anos que fui atropelada, e eu vou comemorar como se fosse o meu segundo aniversário, há pessoas que não entendem como posso brincar com toda esta situação ou até mesmo como posso comemorar. Eu prefiro levar uma lição de vida em tudo aquilo que passo, e a verdade é que estou aqui, bem, feliz.


Não sei que idade tenho, e não estou preocupada com isso, a experiência de vida deu-me “ferramentas” de forma a eu encarar tanta coisa, por outro lado continuo a ver e a sentir as coisas como uma criança, mas o mais importante de tudo, é que sou incondicionalmente apaixonada pela vida.